Como pode o movimento anarcopunk ter mais poder de fazer previsões sobre o neofascismo do que especialistas liberais?

Por Admin

PunksVsGuga

Pelo menos eu acho que o cabelo do Guga Chacra representa um niilismo estético mais sincero do que o dos punks…

Quando o capitólio em Washington, EUA, foi invadido por militantes neofascistas, neonazistas e “ancaps”, gente como Guga Chacra e seus colegas afirmaram que jamais imaginaram que tal coisa pudesse acontecer na “maior democracia do mundo”. Apesar disso, já faz uns anos que avisos sobre as ações de neonazistas e afins vêm sendo feitos, mas foram levados a sério apenas gradativamente, ou seja, poucas pessoas levaram a sério no início, mas com o passar do tempo, foi lentamente se tornando inegável. Aqueles que soaram os avisos se organizaram em blocos de autodefesa comunitária, as chamadas Antifa (antifascistas), para expulsar tal ameaça de suas vizinhanças, assim como trazê-las à tona para atrapalhar o progresso de seus planos. Esta encarnação do antifascismo tem sido mantida viva desde as últimas décadas do século XX por ativistas anarquistas e comunistas. Um de seus métodos é a tática black bloc, usada para enfrentamento nas ruas e associada à parcela mais combativa do movimento anarquista, que inclui o movimento anarcopunk. Para muitas pessoas, anarquismo e punk se tornaram sinônimos e embora isso seja um equívoco (nem todo punk é anarquista, assim como ser punk não é um requisito para ser anarquista), é inegável a importância do anarcopunk para a divulgação do anarquismo desde fins da década de 1970. Membros do movimento anarcopunk já vinham avisando há décadas do risco de uma nova ascensão do fascismo, enquanto cientistas sociais e políticos ortodoxos descartaram tal possibilidade até o dia em que se surpreenderam com tamanha presença de neofascistas em posições de poder e com as ações de seus apoiadores, incluindo a invasão do capitólio dos EUA e a tentativa de golpe de estado, sob as bençãos de Donald Trump, em janeiro deste ano. Como é possível que o movimento anarcopunk tenha mais capacidade de fazer previsões sobre o cenário político atual do que especialistas liberais?

Há dois aspectos dos especialistas liberais que devem ser destacados para entendermos como eles foram ruins em suas análises sobre o neofascismo: o primeiro, um equívoco de caráter histórico; o segundo, um dogma entre os princípios liberais. Historicamente, a ortodoxia da História e das Ciências Sociais acreditou que o nazifascismo teria encontrado seu fim com a conclusão da Segunda Guerra Mundial, ou seja, acreditaram que com Hitler e Mussolini derrotados e mortos, o nazifascismo estaria relegado ao passado. O quão crasso é esse erro pode ser constatado ao lembrarmos que Francisco Franco governou a Espanha até 1975 e seus sucessores durante a transição para a democracia foram também falangistas (fascismo espanhol). Além disso, vários movimentos sociais e culturais e partidos ao redor do mundo mantiveram viva a ameaça do nazifascismo, como, por exemplo, a Frente Nacional na Inglaterra e na França.

O segundo aspecto é o dogma liberal de que todas as formas de discurso devem ser não só respeitadas, mas protegidas. Lembro-me que minha orientadora na faculdade afirmou que manifestantes neonazistas devem ter o direito a marchar nas ruas garantido pela polícia, ao que me contrapus afirmando que os moradores é quem deveriam ser protegidos de uma multidão a lhe fazer ameaças às suas vidas e aliciando mais membros para buscar realizar tais ameaças*. É infeliz que muitos liberais não percebam que permitir discursos ameaçadores resulta em diminuir a liberdade dos ameaçados. Noam Chomsky, um nome geralmente associado com o anarquismo, mas que equivocada e infelizmente enxerga o anarquismo como uma forma de realização ideal para o liberalismo (Chomsky ignora que o liberalismo vê os indivíduos como ameaças às liberdades uns dos outros, enquanto o anarquismo crê que a liberdade individual só existe por meio da inter-relação social) afirmou em Chomsky on Anarchism que “sobre a liberdade de expressão, há basicamente duas posições: você a defende vigorosamente para pontos de vista que você odeia ou a rejeita em favor de padrões stalinistas/fascistas. Infelizmente ainda é necessário enfatizar essas simples verdades”, dizendo ainda que foi uma vitória para a liberdade quando a suprema corte dos EUA decidiu que a Ku Klux Klan tinha o direito de marchar com armas em mãos enquanto gritava “enterrem os crioulos” (CHOMSKY, 2005, p. 167). Quem acredita que todas as formas de discurso devem ser protegidas pelo estado, crê que somente o livre debate será eficaz contra o nazifascismo e outras formas de autoritarismo, pois os critérios da racionalidade revelariam a todos quem está certo e quem está errado, enquanto impedir o discurso intolerantes seria a porta de entrada para impedir qualquer forma de discurso. Esse ponto de vista separa discurso de ação, esperando que atos criminosos individualizados dos nazifascistas sejam punidos, enquanto o discurso deveria ser protegido. Bastaria então que houvesse uma força policial e um sistema de justiça que funcionassem e que a sociedade fosse racionalmente evoluída o suficiente para que o nazifascismo não fosse mais uma ameaça relevante. **

Prof. Noam Chomsky, ao se opor à Antifa, descreveu o movimento de maneira equivocada, demonstrando não ter propriedade sobre o assunto. — “Seis razões pelas quais Chomsky está errado sobre Antifa”

Nem todos os liberais mantém tal extremo dogmatismo, porém. Em Sociedade Aberta e seus Inimigos, Karl Popper articulou um argumento que ficou conhecido como o paradoxo da tolerância: se uma sociedade é tolerante a todas as formas de discurso, os tolerantes serão eventualmente destruídos pelos intolerantes.(POPPER, 1962, vol. 1, p.279) Porém Popper consideraria os participantes das Antifas e black blocs como ameaças às “sociedades abertas” iguais aos fascistas, uma vez que ele só admitia violência política e revolucionária contra uma tirania e com o objetivo de implantar democracia representativa (POPPER, 1945, vol. 2, p. 148). Assim sendo, quem concorda com as ideias de Popper poderá ser muito lento para perceber as ameaças, limitando o escopo percebido de tais ameaças e ao mesmo tempo reprovando a abordagem das Antifas em favor do reformismo legislativo. A maioria das mesmas pessoas que atacam fascistas como forma de autodefesa comunitária também se dispõem a entrar em confronto com a polícia durante protestos e, em outras ocasiões, a atacar alvos representativos do capitalismo (bancos e filiais de redes de comércio, por exemplo) e edifícios do estado como meio de pressão sobre as classes dominantes e anseiam por uma revolução que substitua a democracia representativa por uma forma de autogestão popular.

Os dois aspectos descritos acima indicam como os liberais se tornaram incapazes de perceber uma nova ascensão do nazifascismo ou o advento do neofascismo como uma possibilidade. Se a eficiência científica é medida pela capacidade de fazer previsões com base nos dados conhecidos, então as ciências sociais liberais precisam urgentemente admitir seus defeitos. Enquanto isso, anarcopunks, skinheads de esquerda e torcidas organizadas (em especial as na Europa) combatiam neonazistas e neofascistas nas ruas. Mas até aí, o leitor pode dizer que briga de gangues não é a mesma coisa que capacidade de fazer previsão. É preciso explicar como a experiência desses grupos permitiu que eles previssem o momento em que vivemos.

Primeiramente, a noção de que a democracia liberal é o pináculo da evolução social é uma bobagem. O nazifascismo, apelando aos afetos de multidões insatisfeitas, convence pessoas não por meio da racionalidade, mas por confirmação de viés. São justamente aqueles critérios do discurso racional que são jogados fora pelos nazifascistas. Aqueles que combatem o nazifascismo através da proximidade física sabem como o discurso deles pode ser sedutor para pessoas que se sentem frustradas por um sistema socioeconômico que promete sucesso aos esforçados, mas não reconhece esses mesmos esforços. Os participantes das Antifas conhecem as consequências do racismo e sabem da urgência necessária em calar a boca de quem quer convencer seus vizinhos e colegas de trabalho de que negros, judeus, árabes, romani, LGBTQ ou pessoas com deficiências seriam responsáveis pelos males da sociedade.

Pastor Michael McBride e outros organizadores do contraprotesto antirracista em Berkeley defendem a ação da Antifa

Por conta dos enfrentamentos nas ruas, eles sabem que a polícia simpatiza com os nazifascistas e antagoniza os antifascistas. Por serem ligados às comunidades e a movimentos sociais, os participantes das Antifas sabem que a polícia também é uma força para manter as estruturas do racismo sistêmico, ou seja, para oprimir as minorias raciais e culturais como forma de manter a circulação de riquezas na economia acontecendo em relativa tranquilidade (tranquilidade para quem não sofre a opressão, claro) a despeito da desigualdade. Assim, há muitos pontos de encontro entre a polícia e os nazifascistas. Muitos membros de grupos nazifascistas são policiais ou mantém relações pessoais com policiais. Outra ação comum dos grupos Antifa é divulgação de dados pessoais de militantes nazifascistas, de modo a alertar as comunidades da presença de tal ameaça. Por realizarem tal trabalho de pesquisa e investigação, as Antifas sabem que entre os nazifascistas há pessoas de condição social privilegiada e membros de famílias politicamente importantes. Então não é difícil concluir que se entre as pessoas contra as quais um punk briga nas ruas há um policial ou amigo de policial, então, mais cedo ou mais tarde, haverá no comando das polícias um neonazista, se já não há; se entre os neonazistas está filhos de políticos, significa que já há ou haverá, em breve, políticos neonazistas; que se os grupos neonazistas têm membros de famílias abastadas, significa que as ações de uma polícia neonazista ou as pautas de políticos neonazistas, em algum momento, terão apoio de uma camada da sociedade capaz de financiá-los.

Há um outro aspecto dos grupos neonazistas que deve ser também enfatizado em razão da contraposição do movimento punk: neonazistas usam sua oposição ao comunismo como forma de mascarar o racismo. Na década de 1970, punks ingleses criaram a iniciativa Rock Against Racism como forma de combater o crescimento da National Front. Em resposta, os neonazistas criaram o Rock Against Communism como iniciativa para promover bandas unidas pela supremacia branca. Dizendo-se anticomunistas, pretendiam atribuir a si mesmos um verniz de legitimidade e angariar a simpatia da direita ortodoxa. Até hoje, os integralistas (fascistas brasileiros) fazem demonstrações públicas de anticomunismo com esse intuito.

Além da presença dos nazifascistas nas instituições do estado, é preciso enxergar os valores em comum que fazem os nazifascistas bem aceitos nesses meios. Se a polícia é uma força para manter a sujeição do trabalhador e das minorias excluídas, isso a torna propícia às ideias nazifascistas. Os nazifascistas não se utilizam apenas de meios ilegais, mas também usam como plataformas as mesmas instituições democráticas que os liberais defendem como indiscutíveis. Eles reivindicam liberdade de expressão, defendem a existência do estado e suas armas, naturalizam a desigualdade econômica como condição necessária para a liberdade e fazem uso de eleições. No momento em que fazem uso de tais instituições e valores, muitos liberais se colocam em sua defesa e contra os anarquistas e outros socialistas. Quando o neofascismo se torna tão óbvio que os liberais não são mais capazes de ignorá-los, já é tarde, pois os neofascistas já alcançaram o poder através das alianças com setores tradicionalmente republicanos. Até o dia em que as armas do estado se voltarem contra o liberal, ele dirá que tudo está funcionando dentro do aceitável e que esse bando de anarcopunks são meros arruaceiros que não sabem o que estão falando. Mas quando chega o dia em que os neofascistas calam a boca do liberal, este finge que os anarcopunks jamais os avisaram de nada.

* Minha orientadora não ignora a razão do meu argumento e reconhece que permitir discursos ameaçadores resulta no decréscimo da liberdade das pessoas ameaçadas. Ela não é a favor da liberdade para a injúria racial, sexual, de gênero, etc., mas às vezes, demonstra em si mesma como alguns valores liberais são conflitantes entre si.

** A afirmação de Chomsky é falsa também porque são poucos os países, se algum, que permitem tanta liberdade de expressão como os EUA. No entanto, nem mesmo ele seria tão tolo a ponto de comparar Alemanha e França, por exemplo, a regimes fascistas ou stalinistas por limitarem mais a liberdade de expressão do que os EUA. A dicotomia que ele expressa é, portanto, absurda.

Referências bibliográficas:

Bray, Mark – Antifa: O Manual Antifascista, trad. Guilherme Ziggy, Autonomia Literária, 2017

Chomsky, A. Noam – Chomsky on Anarchism, AK Press, 2005

Popper, Karl R. – The Open Society and its Enemies, vol I, Londres, Routledge & Kegan Paul, 1962

______ – The Open Society and its Enemies, vol II, Londres, Routledge & Kegan Paul, 1945

Leia / veja mais sobre os assuntos tratados neste artigo:

Antifa: O Manual Antifascista, de Mark Bray:
PDF / Para comprar

White Riot [documentário sobre a iniciativa Rock Contra o Racismo]:
Vídeo

UOL:
“Movimento fascista, integralismo tem adeptos na órbita do governo Bolsonaro”

SBT:
“Capitão da PM é líder de grupo fascista”

The Intercept Brasil:
“Mantenha os nazistas por perto: O bolsonarismo não respira sem eles.”

CBS:
“Organizadores do contraprotesto em Berkeley defendem ações de ativistas Antifa vestidos de preto”

The Guardian:
“Como um policial da Califórnia protegeu neonazistas e perseguiu suas vítimas”

Apunhalado numa manifestação neonazi, chamado de criminoso: como a polícia foi atrás de um ativista negro”

FBI avisou por anos que a polícia se aconchega com a extrema-direita. Ninguém escuta? Fui agente do FBI infiltrado nos supremacistas brancos. Muitas polícias locais não levam a extrema-direita a sério – ou simpatizam ativamente”

Policiais e autoridades públicas dos EUA doaram para Kyle Rittenhouse, vazamento revela: Policiais e autoridades também doaram para campanhas de ativistas de extrema-direita e colegas policiais acusados de atirar em afro-americanos”

USA Today:
“Como a polícia lidou com atentado a faca em Washington é outro sinal de como as forças da lei favorecem o grupo extremista Proud Boys”

NBC News:
Análise segundo a segundo dos disparos mortais em Kenosha por adolescente” [Kyle Rittenhouse, 17 anos, viaja para outro estado, mata dois manifestantes e fere um terceiro com um fuzil e é deixado em paz pela polícia até se entregar onde mora.]

“Policial da Califórnia demitido por ligações com grupo extremista Proud Boys: delegado de Fresno Paco Balderrama chamou Proud Boys de ‘grupo de ódio’.”

Yahoo!news:
“Novo guia sobre terrorismo mostra que o FBI ainda classifica “extremistas” negros como ameaça de terrorismo doméstico”

The Washington Post:
“Um policial de Londres pertencia a um grupo terrorista neonazista. Ele foi exposto por um hacker ‘antifa’.”

The Cut:
“Atirador que matou 6 mulheres asiáticas ‘teve um dia ruim’, a polícia diz”

The Intercept:
“Documentos vazados mostram que a polícia sabia que extremistas de direita eram a real ameaça e não a Antifa: uma análise de documentos vazados dos agentes da lei revela obsessão por “antifa” a despeito da [real] evidência de ameaça de violência contra a polícia e manifestantes”

“Vida e morte de um antifascista: Por que a polícia nunca solucionou o homicídio de um antifascista proeminente de Portland?”

It’s Going Down:
“Donald Trump ordenou a execução do ativista de Portland Michael Reinoehl?”

Truthout:
“Trump aparenta admitir que homicídio extrajudicial de Michael Reinoehl foi premeditado”